19/07/2016

O drama silencioso da mutilação genital feminina na Colômbia

Índios da tribo emberá, da Colômbia
"Vou te contar uma história das margens do rio Garrapatas", me disse Laura*.
A história começa com o nascimento de uma menina, o oitavo bebê de uma mãe da mesma localidade em que vive Laura, uma indígena da tribo emberá, da Colômbia.
"Ela viu o que faziam as parteiras", explica. "E não quis ficar de bobeira entre elas, por isso fez sozinha: cortou com uma tesoura o clitóris do bebê, o atravessando inteiro, e começou a jorrar sangue".
Laura se lembra que, no desespero, a mulher não contou ao esposo o que tinha feito, mas disse que a pequena havia nascido doente. "Coisa de espíritos", disse.
Eles caminharam dois dias para tentar curá-la no cânion do Garrapatas, no limite dos Estados de Valle del Cauca e Chocó, no oeste colombiano, uma zona remota e de difícil acesso. Mas não tiveram como salvar a criança.
"A bebezinha morreu assim, jorrando sangue, com hemorragia."

Cura e mutilação

A mulher não pensava em causar danos à filha e o fez com base nas suas crenças, pensando que estava fazendo bem ao bebê, uma "cura" - como é conhecido o processo entre as indígenas, ou "corte do calo". Os homens não participam do procedimento.
Na cultura ocidental, esse procedimento, chamado de mutilação genital feminina (MGF) e é severamente questionada.
Tanto que o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), organismo da ONU responsável por questões populacionais e que trabalha para erradicar esse tipo de procedimento, classifica como "uma prática que implica na alteração ou lesão dos genitais femininos por motivos que não são médicos e que é internacionalmente reconhecida como uma violação dos direitos humanos".
Na legislação colombiana, a morte consequente de uma mutilação genital está contemplada na lei do feminicídio de 2015.
"Anteriormente, quando nasciam, amarravam as perninhas, compravam uma gilete... as meninas nascem com uma coisinha assim (e com as mãos representa a vulva e com um dedo o clitóris), então cortavam isso. Hoje em dia não se pode fazer isso porque dá cadeia".
Assim conta, sem esconder o temor, Irene Guasiruma, uma anciã da comunidade de Wasiruma, no Valle del Cauca.
Ela está sentada na porta de uma das casas do vilarejo - rodeados por montanhas onde se cultiva café e abacate - em que vivem cerca de 40 famílias, a maioria crianças.
Dona Irene saiu mais cedo para ver os grãos de seu pequeno cafezal e voltou falando em tom reflexivo: "Eu não tenho isso, não tenho nada, tenho limpo. Como se chama isso? (não consegue pronunciar a palavra clitóris e ri, com pudor, ao escutá-la). Isso, isso não tenho".
O problema da linguagem não é menor na hora de falar sobre esse assunto.
As mortes de duas meninas em 2007 no Estado de Risaralda (no centro do país) chamou a atenção do país para a prática da mutilação genital feminina entre os índios emberá. Desde então, as autoridades e organismos internacionais tentam conscientizar os indígenas da região.
Visitaram uma comunidade em que as mulheres não tinham palavra para denominar o clitóris. Quando apontaram o local do clitóris no desenho de um corpo feminino, elas disseram: "dor".
E eu pergunto à anciã Irene se ela já praticou a mutilação.
"Não, eu nunca assassinei meninas. Pobrezinhas, como alguém vai cortar isso? Minha mãe gostava de cortar as meninas, mas nunca matou ninguém, cortava de forma perfeita".

Algo peculiar

Um pouco antes dessa conversa, ela estava sentada com mais de uma dezena de crianças ao seu redor e contando histórias tradicionais, como a da menina que virou sereia.
Os mais idosos cumprem um papel essencial na comunidade emberá, são sua memória viva, e referência para os mais jovens, inclusive líderes, conselheiros e governadores, que vêm até eles para pedir conselhos e tomar decisões de acordo com o que diz o conhecimento tradicional
No geral, os idosos são médicos tradicionais, e as idosas são botânicas, como Irene.

Durante nossa visita, um médico tradicional do mesmo vilarejo trabalhava com um companheiro jogando água misturada com diferentes plantas sobre os que entravam em uma casa para "limpar" todos os presentes de espíritos negativos.
Era um encontro para falar sobre a mutilação entre os emberá, que contou com vários homens e mulheres dessa e de outras tribos indígenas, assim como representantes do Estado e da ONU.
Mas algo particular aconteceu nesse evento. Em uma das últimas palestras do dia, uma anciã de outra tribo, Blanca Lucila Andrade, deixou todos perplexos ao admitir que não somente ela havia sido submetida à mutilação genital, como que também tinha realizado o procedimento, como parteira tradicional, com suas quatro filhas e netas.
Blanca não é emberá, mas da tribo nasa, do Estado do Cauca. Basicamente, ela acabava de derrubar a teoria de que a prática havia sido erradicada entre os nasa. E falava com um espírito de resistência.
Ela conversou comigo depois da apresentação. Uma mulher pequena e forte, elegante em seus trajes e chapéu tradicionais.
"Agora quando uma família me diz que quer que eu faça, eu faço; mas se me dizem eu não querem, não faço. É uma coisa rara, mas nunca sangram quando eu faço".
Ela já tinha sido advertida de que se trata de um procedimento nocivo, o que a deixou "surpresa".
Claramente, a prática não acabou, nem entre os nasa, nem entre os emberá.
Recentemente foram reportados dois casos de meninas emberá no estado do Valle del Cauca que apresentaram infecções generalizadas por causa da mutilação.

Consequências

"As consequências físicas mais frequentes são as infecções localizadas, porque é uma região coberta e úmida, onde não se fazem curativos", explica Leonardo Quinteros Suárex, do Instituto Nacional de Medicina Legal da Colômbia.
"Também podem ocorrer sangramentos longos, que levam à perda massiva de sangue e podem levar à morte".
As sequelas podem afetar a vida cotidiana das meninas e mulheres e complicar partos.
A maioria dos casos de MGF ocorre na África e no Oriente Médio, onde, até 2008, mais de 140 milhões de meninas e mulheres haviam sofrido algum tipo de mutilação genital.
A ONU estima que, a cada ano, 3 milhões de meninas correm o risco de ser mutiladas e morrer por consequência disso em todo o mundo.
Na América Latina, há registros informais da prática da mutilação em grupos indígenas- e alguns de ascendência africana - de Brasil e Equador até o México, ainda que se acredite que na maioria deles ela tenha sido erradicada ou desaparecido.
Mas não entre os emberá, a segunda maior tribo indígena na Colômbia - são cerca de 250 mil índios - uma nação que chega às fronteiras do país com Equador e o sul do Panamá ao norte. Por isso, a ONU está investigando a possibilidade de existirem casos também nesses países.
"Dizem que eles fazem com uma tesoura ou uma gilete ou o queimam com uma colher - a esquentam no fogo e vão machucando para chamuscar o clitóris da menina", explica Laura sobre como é a prática na comunidade emberá (não é em toda tribo, mas fundamentalmente entre os emberá Chamí).
Algumas outras pessoas me contaram que se pode cortar apenas com a folha afiada de uma planta. Há parteiras tradicionais que dizem fazer a "cura" simplesmente colocando plantas na região da vagina.
Estimativas apontam que, entre os emberá Chamí, duas em cada três mulheres sofreram mutilação. Mas os dados não são confirmados, nem oficiais.

'Como assim, vocês não fazem?'

Em 2007, quando os casos de Risaralda vieram à tona, muitos criticaram os emberá, especialmente as parteiras tradicionais, geralmente encarregadas de realizar a mutilação.
Isso acabou causando muita confusão entre os emberá, que acreditam que a vida é sagrada, e ao mesmo tempo não podiam entender como algo que supunham ser benéfico poderia causar a morte.
"O principal desafio é que essa é uma prática tradicional e muitas comunidades acreditam que não é maléfica", resume Jorge Parra, representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) na Colômbia.
Para os emberá é um parâmetro de normalidade. Quando uma funcionária do governo foi falar com as mulheres da comunidade, a primeira pergunta que estes lhe fizeram foi: "Como assim, vocês não fazem?".
Em 2007, órgãos do Estado e entidades internacionais chegaram a considerar se seria o caso de tirar as meninas que haviam sido submetidas à mutilação de suas mães e entregá-las a uma entidade encarregada de zelar pelos menores.
Com isso, surgiu o risco de a comunidade se fechar em si mesma, o risco de que uma prática silenciosa ficasse ainda mais ocultada por medo: medo do escárnio público, de perder suas filhas, até medo de prisão.

Por que fazem isso?

Há varias explicações sobre as razões de os emberá e os nasa praticarem a mutilação feminina, mas fundamentalmente se acredita que a prática poderia eliminar o desejo de uma mulher de estar com outros homens que não sejam o marido.
"Assim, ela se torna uma mulher que será aceita pelo homem que se converta em seu esposo", explica Irene Guasiruma.
"Por isso, anteriormente cortavam essa coisinha, porque se a mulher não tem isso, não tem nada de fogosa, não fica excitada", disse.
Mas logo, ela mesma assegura: "Pura mentira, até quando se tem isso cortado também se busca outro marido, se troca de marido".
Entre os emberá existe ainda a crença de que o clitóris pode crescer e se converter em um pênis.
Tanto que, para demonstrar que isso não ocorria, uma enfermeira do hospital de Mistrató, em Risaralda, cuja equipe começou a trabalhar com a comunidade depois dos casos de mutilação que vieram à tona em 2007, reuniu um grupo de parteiras emberá, as juntou todas em um quarto, ficou nua e lhes mostrou o próprio clitóris como prova.

A origem

De acordo com o historiador Victor Zuluaga, há três versões sobre a origem dessa prática.
Por um lado está a ideia de que se trata de uma prática ancestral da comunidade, por outro, que foi introduzida por um grupo de monjas no início do século 20 e, finalmente, que foi algo que os indígenas adaptaram dos escravos negros muçulmanos que vieram de Mali no século 18.
Zuluaga está convencido de que a última hipótese é a mais provável.
"É uma teoria bastante consistente", diz Esmeralda Ruiz, consultora da UNFPA sobre temas de mutilação.
Os defensores dessa teoria acham que, ao implicar que não se trata de um costume ancestral da própria tribo, seria mais fácil abandoná-lo.
"Se as parteiras tradicionais acreditam que é da cultura da tribo elas, não vão abandonar a prática. Mas se entendem que não é originária da cultura delas, vão dizer : 'ah então podemos deixar de fazer, não tem problema'", disse Ruiz.
E em qual delas os emberá acreditam? Depende. Depende da zona onde vivem, da idade, de quão arraigada está a convicção de que se trata de uma prática tradicional.
Alberto Guasiruma, conselheiro ancião da Organização Regional Indígena do Valle del Cauca, explica que nesse momento há uma discussão sobre se essa é uma prática que deve ser abandonada ou mantida, e que há posições dos dois lados.
Ele pede ao governo colombiano que as intervenções sejam feitas com base em reflexões internas da própria comunidade.
"É um tema que requer muita reflexão, porque não é uma decisão fácil de tomar. Creio que não é uma decisão que das autoridades, mas da comunidade em seu conjunto e a última palavra é dos anciões. É um tema muito mais das mulheres, de como elas se sintam melhor".
* Nome fictício.

Reportagem de Natalio Cozoy
fonte:http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36809717#orb-banner
foto:https://br.pinterest.com/pin/369998925612166947/

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